24 de dezembro de 2010

Vale a pena

Há poucos dias, andei expressando em uma rede social a minha falta de ânimo em relação à profissão em razão dos baixos salários e da desvalorização pelo poder público e pela sociedade como um todo. Atualmente, tenho reclamado muito, o que não acho honesto. O mercado de trabalho está aí, quem não está satisfeito deve procurar outra atividade... Só que acredito que tenho algum compromisso espiritual com o magistério. Está rindo? Pode acreditar! Todas as vezes que estou no auge do descontentamento, parafraseando Caetano, que adoro, "alguma coisa acontece no meu coração"...

Dia 22 de dezembro, andava pela rua, onde vivi toda a minha infância e adolescência, procurando os primeiros presentes de Natal e encontrei com a mãe de um ex-aluno, que sempre me tratou com muito respeito. Mesmo anos depois do filho ter deixado de ser meu aluno, no meu aniversário ela me presenteava com uma rosa. Jamais se esqueceu, pois era também o aniversário da mãe dela. Esse gesto, aparentemente simples, fez com que eu me sentisse mais importante por bastante tempo.

Pedi demissão do colégio e nossos encontros foram ficando mais raros, porém, sempre prazerosos, pelo menos para mim. Durante esses breves momentos, contava-me os progressos do menino, hoje engenheiro da computação, casado, bem colocado no mercado.

Sou muito indiferente ao período do Natal, sinceramente. Não tenho mais meus pais nem parentes próximos e isso faz a época perder a graça, mas o encontro com essa mãe veio trazer-me um pouquinho do calor que sentia quando era criança e abria os presentes do Papai Noel. Num abraço gostoso, ela me agradeceu por tudo que fiz pelo filho dela (não fiz nada, além da obrigação); por tê-lo recebido com carinho quando chegaram a Petrópolis (foi um prazer, ele era um docinho) e por ter proporcionado bons momentos de aprendizagem a ele (a criança era muuuito inteligente, fica fácil).

Saí com lágrimas nos olhos, tentando esconder a emoção que senti com as palavras. Foi um dos melhores momentos que vivi em 2010, fez toda a diferença e me deixou convicta de que com todas as dificuldades, ser professora vale a pena.


18 de dezembro de 2010

Acelera!

Tive uma Classe de Aceleração em 2003. Ali estava uma turma repleta dos fracassos do sistema escolar. Trinta e poucos alunos com distorção idade/série e a aquisição da leitura e da escrita inacabada. Adolescentes descrentes do que a escola poderia oferecer e acrescentar nas suas vidas. A realidade nua e crua: juntaram todos os multirrepetentes no mesmo espaço para que a última professora a chegar desse um jeito em todos. Cruel!

É... Só que a empatia de ambos os lados surgiu e o trabalho, apesar de intenso, produziu resultados bem satisfatórios. O projeto oferecia novas metodologias e adorei trabalhar não só com os alunos, mas também com o programa que possibilitava algumas ousadias, além de oferecer reflexões acerca daquelas pessoas que não mereciam ser consideradas "perdidas" pelo sistema, pois tinham muito com que contribuir. Enxergava pessoas que transbordavam potencial, de quem a escola tradicional não deu conta.

Quase todos apresentaram avanços significativos, mas uma das meninas não conseguia ir em frente. Essa situação me angustiava. Ainda não tinha conseguido fazê-la perceber sentido em participar das atividades, nem empenhar algum esforço para superar as dificuldades. Sem encontrar alternativa, resolvi chamar o responsável para conversar e tentar entender o percurso da menina, na verdade quase moça, na escola. Havia rumores de que ela estava grávida.

Um casal já idoso compareceu, respondendo a minha convocação. A preocupação resumia-se no pavor de que ela tivesse me desrespeitado. Logo, respiraram aliviados quando expliquei que a filha deles era um doce, uma moça educada e caprichosa... só não conseguia acompanhar a proposta de aceleração da aprendizagem. Iniciei uma exposição a respeito dos objetivos pretendidos e a distância que ela mantinha dos resultados esperados, mas eles estavam felizes da vida com a notícia de que o problema não era de comportamento. A filha tinha alcançado o que quem nunca frequentou a escola poderia imaginar. Rabiscar meia dúzia de palavras para eles era uma vitória; e a mocinha era capaz disso.

Muito animada, a mãe me contou que ela era tão inteligente, tão inteligente, que sua letra era igual à de médico. Foi uma ducha de água fria. Diante da dificuldade dos pais para entender a situação, não havia mais o que fazer, a não ser respeitar o ponto de vista dos senhores. Senti vontade de rir da revelação e de chorar de desespero por não saber mais como agir.

A gravidez foi confirmada e a aluna desistiu de estudar. No ano seguinte, conheci o bebezinho gerado enquanto aquela mãe-menina estava na minha turma e não pretendia voltar aos bancos escolares. "Preciso trabalhar", disse-me. 

Queria que o final da história fosse outro.

11 de dezembro de 2010

Problema

Uma das ricas experiências que tive foi o trabalho com alunos vindos de EJA (Educação de Jovens e Adultos). O simples fato de retornarem aos bancos escolares, alguns já avós, é admirável, e, mais ainda, pela vontade de aprender que demonstram. Certamente, qualquer know-how acadêmico e os anos de magistério não me prepararam para a pretensão de ensinar Língua Portuguesa a esse público.

Todas as aulas foram laboratórios pedagógicos que questionaram a minha prática e apontavam para uma direção que a gramática não satisfazia. Um namoro com as teorias linguísticas teve início. O vazio de que tudo o que sabia era muito pouco tomou corpo e se instalou em mim. Estudar imensamente mais era urgente... muito urgente... URGENTÍSSIMO!!!!!!!!

A presença de uma cultura popular da qual eu não tinha conhecimento e de uma forma de expressão diferente da minha, mas eficiente, faziam-me sentir apreensiva. Despojar-me de preconceitos era fundamental para o estabelecimento de um diálogo. Naquele momento, eu era quem mais precisava aprender. Foi necessário falar menos e ouvir mais.

Numa das vezes em que prestava atenção às conversinhas paralelas que ocorriam durante a aula, tive a certeza de que o vocabulário consagrado pela norma culta pode não fazer qualquer sentido e, pior, atrapalhar a comunicação do docente. Não estou aqui querendo dizer que a língua padrão deve ser ignorada por nós, professores, porém o respeito às variantes linguísticas e, principalmente, a consciência de que elas estão presentes no ambiente escolar são o nosso ponto de partida.

Sem filosofar mais, vou contar o consenso acerca do que deixei escrito no quadro, enquanto ouvia, como uma alcoviteira, as reflexões de dois desses alunos extraordinários.

_ O que está escrito lá?

_ Pro – ble – ma. “Poblema” – concluiu.

_ Mas como é que se fala isso? Não é pobrema? – arrematou bastante irritado.

_ É assim: “poblema” – explicou – é quando é meu. “Pobrema” é quando é seu.

_ E problema?

_ Ah, problema só tem na escola!

Não foi uma conclusão lógica?

2 de dezembro de 2010

Dureza...

A primeira história que resolvi compartilhar foi uma das que, em breve, desapareceriam da memória, se não tivesse resolvido criar o blog.
Nos primeiros anos de magistério, e nos outros também, estava sempre dura. O dinheirinho que sobrava era reservado para as necessidades mais urgentes e emperiquitar-me não fazia parte das prioridades, apesar de hoje achar que deveria ter sido.
Mas não se trata de futilidades... Estava com o par de sapatos pedindo aposentadoria e, obviamente, não tinha planejado comprar nada. Era um bom sapato. Estava apenas um pouco esbeiçado. Poderia esperar. Precisava juntar uma grana e comprar alguns itens para a casa, que julgava verdadeiramente essenciais.
Um dia, sempre há esse tal dia, fui trabalhar com o incansável calçado, que ainda deveria durar pelo menos até o próximo pagamento. Notei que a sola tinha vontade própria e decidiu, por sua conta , dar uma leve descolada imperceptível, lógico. Ninguém notaria.
Lecionava no primeiro segmento do fundamental, para crianças de aproximadamente oito anos. Nesta fase, elas começam a perceber tudo, até mesmo o que não devem, mas a sola ligeiramente solta, isso: jamais!
Subíamos todos os dias, depois de formar e cantar, uma escadaria por onde puxava a fila daqueles alunos alegres e dispostos a realizar milhões de descobertas por segundo, das quais me orgulhava de ser a orientadora. Íamos felizes. Eles perguntavam sobre a agenda do dia e, animados, venciam as escadas atrás de mim.
Naquele famigerado dia, enquanto toda essa maravilha acontecia, um dos meninos cutucou meu ombro, educadamente, e fez um sinal, parecendo que gostaria de falar-me algo no ouvido. Abaixei-me, não muito, pelas razões que quem me conhece já entendeu, para saber do segredo que ele falaria:

__ Ô tia, seu sapato tá falando!

Não houve jeito. Tive de deixar tudo o que tinha na carteira na sapataria mais próxima depois do horário de saída.

Vinte anos

Em fevereiro de 2011, completo 20 anos de profissão. Já há bastante tempo, penso nas histórias que vivi. Sentia a necessidade de registrá-las, afinal a massa cinzenta anda me traindo e esquecendo coisas importantes - cada vez mais. Não queria que tantas pessoas fantásticas, que passaram pela minha vida e tiveram a paciência de me aturar, fossem esquecidas nem deixar os fatos que as envolveram sucumbirem ao tempo, restritos apenas a minhas lembranças.
Durante todo esse tempo, aprendi mais do que ensinei. Ri, chorei, quis desistir, mas estou aqui para dividir as histórias colecionadas ao longo da carreira com os amigos, colegas e os alunos xeretas, que sempre nos encontram e são muito bem-vindos.