24 de maio de 2020

O Show das Xucrices: a vitrine dos horrores



Descrever um vídeo é quase uma inutilidade. Está ali, é só assistir. Uma análise depende do que se pensa, e o vídeo da reunião ministerial parece reforçar as convicções de cada uma das extremidades do cabo de guerra que se tornou a política. O diálogo está quase impossível, constatação preocupante.

Há quem diga que o vídeo é o passaporte para a reeleição. Chocante, principalmente, quando seguido da frase, "Eu elegi Bolsonaro pra isso".

Além do show de xucrices, que não depende de interpretação, a reunião põe em xeque os inimigos imaginários do Bolsonarismo: o comunismo, a China, o funcionário público, as leis ambientais, o Judiciário, quem enxerga a corrupção da família, quem simplesmente discorda deles. Um desfile ideológico, um exercício de radicalização e a fritura indiscutível de Moro, cobrado por vários ministros presentes, não à toa considerou sua bala de prata.

Para quem ficou decepcionado e esperava informações inéditas, visto que estamos há tempos como espectadores de operações cinematográficas da Lava Jato, a gravação expõe todo o arcabouço do pensamento da vilania instaurada na condução do País. Já conhecíamos o compêndio obscurantista, travestido de conservador. Até nisso o conjunto da obra é uma farsa. Conservadorismo não é isso. Não podemos perder a capacidade de enxergar a lamentável tragédia política escancarada.

Um projeto de destruição foi desenrolado durante a reunião. A seleção de quem pode e de quem não pode ser considerado brasileiro, quem deve receber apoio do ministro da economia, como aproveitar-se da distração para tomar atitudes contra a democracia, como eliminar quem atrapalha, como formar um exército popular para incrementar a violência que já é incentivada, como aparelhar as instituições que poderiam defender os interesses do presidente, como atacar a imprensa, como avançar na escalada autoritária, como usar a família e a religião para justificar maldades.

Naquele 22 de abril, depois de mais de um mês da crise sanitária, que assusta todo o mundo, as palavras referentes à dor versavam sobre distração. A Covid-19 foi tratada como o assunto que serviria para alienar a população das medidas impopulares de congelamento de salários de servidores e de aprovação de legislação de relaxamento da proteção ambiental. O mau caratismo exposto. Nenhuma empatia.

1 de maio de 2020

MUITAS CRISES e SALVADORES DA PÁTRIA


É quase impossível ter acesso às notícias sem que a sensação de estar num pesadelo tome conta de cada brasileira e brasileiro consciente. Torna-se impossível manter o humor de Poliana com as situações grotescas diárias.

Este momento de horrores não caiu em nossas cabeças de uma só vez. Foi construído ao longo dos últimos anos e, como um polvo, esticou os tentáculos sobre o País abrangendo os motores da vida nas esferas social, econômica, política e institucional. Como se não bastasse, o mundo vive a crise de saúde.

A CRISE SOCIAL

Não há dúvidas de que a diversidade é a marca da população. Nossa formação social abriu um leque de possibilidades. Somos um país multicultural, de etnias diversas, de numerosas manifestações religiosas. Gente criativa, que dá nó em pingo d'água com um bom humor incrível, mas que resolveu negar os contrastes e passar a régua para nivelar a sociedade. Ou você se encaixa nos moldes determinados por poucos ou será perseguido. É preciso ser cristão, conservador, hétero, acreditar na supremacia masculina e manter os papéis de gênero. Esta perspectiva anula minorias e caminha para a ditadura da maioria, um conceito que não é numérico, mas de opressão. O ódio chegou.

A CRISE ECONÔMICA

Nossa história de desenvolvimento econômico teve como pilares a casa grande e a senzala. No início, de forma literal, mais tarde, representativamente. O chicote sempre açoitou os da senzala e esteve nas mãos dos proprietários de terras, de grandes empresas, dos bancos, que se locupletaram das riquezas produzidas pelo trabalho duro, certos de que teriam mais direitos por financiar a exploração. Este é o pensamento do liberalismo clássico, corrente que veste a pele de cordeiro e encanta desavisados entorpecidos pelo discurso de defesa das liberdades e da ideia de um Estado que garante direitos. Só esqueceram de contar a quem o liberalismo protege.

Nesta base de dominação econômica, a normalização da subserviência a poderosos deu a ilusão aos capatazes, que pensavam ser amigos dos donos do dinheiro, de serem também ricos. Porém, a falência do neoliberalismo provocou crises sucessivas e nivelou os de baixo embaixo. Uma vez com privilégios, é difícil abrir mão das migalhas. Em época de pouca farinha, sobrevive quem garante o pirão na selvageria. E a crença em um Salvador da Pátria, formado na escola de Chicago, emergiu. Este faria um novo milagre.

A CRISE POLÍTICA

O poder, ah! o poder. Ele está em toda parte e assume várias formas. O tecido social está permeado pelas relações de dominação. Ele é representado pelo Estado, pelas ideias, pelo capital. É na disciplina que ele se manifesta: autoridade e obediência. Um espiral de muitas representações.

Ainda é difícil imaginar uma sociedade em total equilíbrio e que prescinda o Estado, e este se estrutura legalizando e determinando os mandatários, que usarão a máquina estatal para defender interesses.

O fio seria longo, mas vou focar no pós 1988, quando uma Constituição cidadã, ao menos na teoria, garantia o caminho de uma democracia desejada e que deveria ser consolidada, dividindo poderes, atribuindo canais de participação popular, restituindo direitos e apontando deveres, conquistando a laicidade. Que beleza!

O caminho era a criação de instituições abertas ao diálogo, à distribuição de forças mais harmoniosas, de transparência das ações governamentais. Era até feio demonstrar tendências autoritárias. Atacar a democracia? Jamais! 

Cuidado! Os viúvos e os filhotes da ditadura estão à espreita.

A crise econômica trouxe a saudade do que nunca existiu. Despertou a crença no Salvador da Pátria, um personagem messiânico, e fez a política criar um monstro saído do esgoto do baixo clero, absolutista, sem empatia, aliado a falsos cristãos, que despertou e incentivou o ódio originário da perda dos privilégios. Uma aberração obscurantista e que se agigantou na desesperança. Precisa da mentira para alavancar seus projetos e aposta na confusão para subir os degraus do poder, só com os seus.

A CRISE INSTITUCIONAL

A consolidação de uma democracia passa pela garantia de equilíbrio e de autonomia das forças de Poder.

Mais uma vez, ela, a crise econômica, interfere na percepção de mundo e dá força e visibilidade ao judiciário, levanta bandeiras morais, respaldada num desejo punitivista crescente de certos grupos. Este Poder passa a exercer influências que não lhe competem. O País ofereceu o estrelato ao Poder que deveria ser o mais discreto. Sessões do STF receberam audiência de novela. Um juiz de Curitiba ganhou status de herói. Mais um Salvador da Pátria surgiu, o Paladino da Justiça. Era o sintoma da briga institucional de uma sociedade em desequilíbrio. Um petisco do que estaria por vir.

O monstro ofereceu palanque aos outros Salvadores da Pátria, para depois cortar-lhes a cabeça, já que não seria capaz de dividir o brilho. É imprescindível lembrar que quem manda é ele e, se desafiado, sua fúria é capaz da eliminação de opositores, mas também dos aliados.

A CRISE SANITÁRIA

A pandemia foi o elemento surpresa. Diante da doença, do sofrimento e da morte, o País precisa de um líder. 

O que temos é um admirador do próprio umbigo, com o único interesse de se beneficiar e de proteger os seus, apesar dos horrores que o circundam.

Isolado, resta buscar o apoio de oportunistas e apelar para a radicalização. Como todo animador de seita, fala apenas aos seus apoiadores e provoca o caos.

Resta saber por quanto tempo o mito sobreviverá. A nós cabe acordar do espanto, driblar o torpor.