26 de janeiro de 2020

A nova velha política de alfabetização do Governo Bolsonaro

Recentemente, o presidente fez uma crítica às políticas de alfabetização das administrações anteriores. Declarou que livros didáticos têm muita coisa escrita e que cartilha boa era a Caminho suave, insinuando que as crianças não aprendem em consequência dos métodos utilizados nas escolas. Essa é uma análise simplória, que vai ao encontro do senso comum, e precisa ser analisada à luz dos movimentos de inclusões diversas nas últimas décadas.

Historicamente, a dificuldade na alfabetização de alunos nas escolas públicas transitava pela questão dos métodos, que são muitos.

Alguns deles partem de unidades sonoras mais simples, para construções mais complexas: fonema, sílaba, palavra, frases e orações. Estes foram os mais usados.

Outros partem do princípio de que a compreensão dos sentidos e finalidades do texto são essenciais para que o educando seja efetivamente um leitor. Com base nisso, a decodificação das unidades mais simples é paralelamente trabalhada ao entendimento do texto como mensagem, abrangendo diferentes gêneros textuais, o estudo das finalidades de cada gênero, os usos e sua relação com a realidade, tendo como objetivo as práticas sociais da leitura e da escrita. 

Todo este processo é chamado de letramento. Inclui não só a decodificação (o tal b+a faz ba), como a leitura no sentido mais amplo (conseguir executar uma receita pela compreensão das partes deste gênero textual).

Os métodos que partem das unidades menores ensinam uma técnica de decodificação. Os que partem do contexto abrem horizontes para que alunos e alunas utilizem a técnica para suas vivências.
Você pode, então, pensar que isso é óbvio. Não. Não é.

Quando as crianças (vou me ater à escolarização na idade adequada) têm modelos leitores, elas têm mais noção das práticas sociais, porém lidamos com várias que não vivem em ambientes que proporcionem experiências leitoras nem têm famílias escolarizadas. Isso significa que compreender o papel social da escrita demanda acessar diversos modelos desta prática.

Os métodos que consideram a função social da escrita são científicos, partiram de estudos linguísticos e da epistemologia (estudos que procuram os caminhos de como aprendemos). Para a aquisição da leitura e da escrita, o termo é psicogênese da língua escrita. Não é coisa de amadores. Temos cientistas que estudaram muitos anos para chegarmos a essa práxis.

O grande nó na prática pedagógica é que o fazer docente precisa de acompanhamento, para garantir que as intervenções no processo da aprendizagem sejam efetivas. Professores precisam saber em que fase da compreensão do sistema 
a criança está e oferecer a ela ferramentas para que prossiga na compreensão do sistema. Não há prescrição predeterminada e as escolhas dos professores e das professoras devem ser cirúrgicas: como, quais textos devo selecionar, de que meios preciso dispor para que as crianças percebam regularidades, etc.

Acreditamos que oferecer frases do tipo: O BEBÊ BABA, O BOI DÁ LEITE, OLAVO VIU A UVA não contribuirá em nada para que a leitura e a escrita possam realmente transformar e oferecer motivação para que discentes caminhem para a leitura do mundo, condição tão essencial para a emancipação de cada brasileiro.

13 de janeiro de 2020

Uma mulher de fibra

Minha avó chegou ao Rio do interior de Alagoas, Quebrangulo, com 19 anos, em 1918, tutelada pelo irmão mais velho. A mãe, professora na cidadezinha, morrera de varíola ainda jovem, e o pai, agricultor, não quis deixar a vida do interior nordestino.

Vó Esther adaptou-se perfeitamente à vida glamourosa da cidade grande, embora seguisse a cartilha interiorana citada pelos homens da família. Poucos anos depois, começou uma conversa no portão com meu avô e, por isso o casamento foi marcado. Moral da época.

Foi morar em Friburgo, região serrana do estado. Meu avô tinha um armarinho e fazia as compras para o pequeno comércio na capital.

Em 7 anos de casada, vovó teve 4 filhos e estava grávida de mais um (minha mãe). Nesta ocasião, descobriu que o marido tinha uma amante no Rio de Janeiro e que a viagem de compras, daquela vez, teria outro objetivo: acompanhar a amante em um procedimento de aborto. A notícia ainda trazia louvores à beleza deslumbrante da madame da capital. Estamos em 1929.

Minha avó procurou pelo marido, que fazia as malas da viagem, para uma conversa, e avisou que, se fosse acompanhar a moça, ela iria embora.

Ele achou graça do piti da mulher traída e deu sequência ao que havia planejado. Era ridículo aquele comportamento para uma mãe de família.

Na volta, minha avó tinha cumprido a promessa de ir embora para o Rio de Janeiro, com os 4 meninos e um barrigão no 8º mês de gestação.

Cabra fêmea, sim senhor, minha avó pediu estadia ao irmão, contou a história, e ele a apoiou (?!?!?!?). Impensável, para a época.

Meu avô esperou que ela se arrependesse e imaginou que pediria para voltar, passada a raiva. Ele cuidaria de diminuir a mágoa. Isso nunca aconteceu.

Vovó, após o nascimento da minha mãe, alugou uma casa de 17 quartos na distante Copacabana e montou uma pensão, sem recursos, mas com bastante disposição e coragem. Tinha 5 filhos para sustentar. Não haveria tempo para chorar.
Criou os filhos sozinha, até prosperou numa época. 

Soube que o ex-marido passava por dificuldades e o empregou, como também deu vaga de trabalho a um dos filhos dele com a tal da amante - formaram família.

Os irmãos de lá e de cá se gostaram, ficaram próximos, e os ressentimentos, no passado.

Como não admirar uma mulher que nas primeiras décadas do século XX, num Brasil tão atrasado, teve coragem de ser independente? Uma feminista genuína, sem nem saber que era.

9 de janeiro de 2020

Olhos de aprender

Na fila do caixa de um supermercado, cedi a vez a um rapaz com poucos volumes, que ficou me olhando algum tempo e logo perguntou se eu era professora.
Assim que confirmei, ele disse que achava que eu tinha sido professora dele num CIEP, onde eu realmente havia trabalhado e tive as mais gratificantes experiências. O rosto do jovem não me veio à lembrança, e perguntei o seu nome. Quando respondeu, sorriu, e o sorriso logo iluminou aquela face com uma expressão mais pueril. Lembrei do menino na sala de aula. Ele me disse, "Eu não ia esquecer esses olhos".
Espero que tenham sido olhos de acolher, não de julgar; de compreender, não de impaciência; de solidariedade, não de preconceito. Aquele sorriso me encheu de gratidão, pela oportunidade de ao pouco ensinar, muito aprender.
Como gosto desses encontros!