20 de junho de 2020

Abraham vai tarde

Abraham vai tarde

A passagem de Abraham Weintraub pelo Ministério da Educação, ao contrário do que se pensa, não foi um tempo apenas de ausência de projetos, mas, antes de tudo, um tempo de destruição.

A ausência de projetos já seria por si só um problema, porém era o problema que apenas escondia uma estratégia para emperrar uma engrenagem que molda o futuro de uma Nação. A educação, que diariamente enfrenta muitos desafios, teve de lidar com o discurso ideologizado que transfere ao outro os males do próprio intento.

Contabilizam-se inúmeros ataques a universidades, colecionam-se incompreensões da realidade, shows para o Twitter, usos equivocados da língua, provocações. Com um discurso lacrador e adolescente, o ex-ministro demonstrou que as únicas prerrogativas que o levaram ao cargo foram ser olavista e puxa-saco.

O papel de articulador da tecitura  educacional durante a pandemia ficou esquecido por trás das declarações antidemocráticas e do pensamento de que, para ser brasileiro, é preciso encaixar-se num padrão que não abriga a diversidade presente no território nacional. Urgem a inclusão digital e as discussões sobre o Fundeb, mas as fantasias sobre plantações de canabis nos quintais das universidades públicas, reconhecidamente instituições de excelência, procuravam minimizar as desigualdades presentes no âmbito da educação.

A ilusão meritocrática pretende culpar professores pelas diferenças abissais de oportunidades que dividem injustamente os alunos. Não seria a cartilha Caminho Suave nem os livros revisionistas prometidos para os próximos anos, que promoveriam as transformações desejadas. Seriam apenas mais cortinas de fumaça, como tantas outras, que desviaram nossa atenção.

Arrasados com as nefastas declarações da reunião ministerial, esperávamos a exoneração do fanfarrão, contudo receosos, já que nesta aventura que representa o governo, o que é ruim sempre pode piorar.

14 de junho de 2020

As Lives de Jair


O eleitorado de Jair precisa ser alimentado o tempo todo com o ódio aos inimigos imaginários: o comunismo, os ex-aliados, qualquer um que contrarie as ideias do Mi(n)to, as minorias. 

Jair foi um acidente. Todo brasileiro com o mínimo de consciência republicana e espírito democrático é capaz de perceber que a eleição desta caricatura foi um desvio de percurso.

Jair não entende de economia nem de coisa nenhuma importante para o crescimento da Nação, é completamente despreparado; vilipendia a democracia ao admirar ditadores; fere os direitos humanos ao cultuar torturadores; afronta o Estado laico ao impor a prevalência de um credo; atropela conquistas democráticas ao negar direitos civis; particulariza o que é público; nega a beleza da diversidade; personaliza o interesse público ao beneficiar a família e os amigos; institucionaliza a violência; apequena a soberania ao submeter-se ao Tio Sam voluntariamente; interpreta conforme a conveniência a Constituição.

Apesar de tudo isso, o ódio funciona como uma venda, e o Bolsonarismo raiz permanece no apoio e radicaliza as ações na mesma medida em que o presidente leva o discurso ao extremo. É como funcionam as transmissões ao vivo. O apogeu do absurdo a serviço da distorção da realidade e da manipulação 

Nessa quinta-feira, assistimos estupefatos ao mandatário incentivar o eleitorado a entrar em hospitais e filmar leitos vazios, a fim de confirmar a narrativa da gripezinha e do falso benefício do contágio de rebanho. Apesar de a referência ser constantemente depreciativa, refiro-me aqui ao termo técnico, da corrente que defende o contágio em larga escala para o desenvolvimento de imunidade, mas que expõe a uma letalidade insustentável.

O presidente ainda demonstra a intimidade com a Polícia Federal, quando citou a possibilidade de um contato direto para enviar os vídeos que chegariam com leitos vazios e que contribuiriam com o discurso de que a pandemia é uma fantasia. Os protocolos dos processos legais parecem alegorias dispensáveis, na distopia na qual nos transformamos.

Mas e daí?

O que importa é manter o absurdo, banalizar o mal até que nada disso possa surpreender o cidadão comum, aquele que apenas tenta sobreviver à fome e às crises fabricadas a cada dia por quem só se importa com o próprio umbigo e que poderá, no turbilhão, aceitar a opressão e a morte.

Ainda aguardo uma visita aos hospitais, mesmo que seja uma passada fiscalizadora, ainda espero da suposta liderança um aceno de solidariedade a tantas perdas, massificadas nas estatísticas frias, quando minimizam as histórias da poesia gerada por cada vida enredada no cotidiano rico da individualidade múltipla das famílias que sofrem com o adeus silencioso.

24 de maio de 2020

O Show das Xucrices: a vitrine dos horrores



Descrever um vídeo é quase uma inutilidade. Está ali, é só assistir. Uma análise depende do que se pensa, e o vídeo da reunião ministerial parece reforçar as convicções de cada uma das extremidades do cabo de guerra que se tornou a política. O diálogo está quase impossível, constatação preocupante.

Há quem diga que o vídeo é o passaporte para a reeleição. Chocante, principalmente, quando seguido da frase, "Eu elegi Bolsonaro pra isso".

Além do show de xucrices, que não depende de interpretação, a reunião põe em xeque os inimigos imaginários do Bolsonarismo: o comunismo, a China, o funcionário público, as leis ambientais, o Judiciário, quem enxerga a corrupção da família, quem simplesmente discorda deles. Um desfile ideológico, um exercício de radicalização e a fritura indiscutível de Moro, cobrado por vários ministros presentes, não à toa considerou sua bala de prata.

Para quem ficou decepcionado e esperava informações inéditas, visto que estamos há tempos como espectadores de operações cinematográficas da Lava Jato, a gravação expõe todo o arcabouço do pensamento da vilania instaurada na condução do País. Já conhecíamos o compêndio obscurantista, travestido de conservador. Até nisso o conjunto da obra é uma farsa. Conservadorismo não é isso. Não podemos perder a capacidade de enxergar a lamentável tragédia política escancarada.

Um projeto de destruição foi desenrolado durante a reunião. A seleção de quem pode e de quem não pode ser considerado brasileiro, quem deve receber apoio do ministro da economia, como aproveitar-se da distração para tomar atitudes contra a democracia, como eliminar quem atrapalha, como formar um exército popular para incrementar a violência que já é incentivada, como aparelhar as instituições que poderiam defender os interesses do presidente, como atacar a imprensa, como avançar na escalada autoritária, como usar a família e a religião para justificar maldades.

Naquele 22 de abril, depois de mais de um mês da crise sanitária, que assusta todo o mundo, as palavras referentes à dor versavam sobre distração. A Covid-19 foi tratada como o assunto que serviria para alienar a população das medidas impopulares de congelamento de salários de servidores e de aprovação de legislação de relaxamento da proteção ambiental. O mau caratismo exposto. Nenhuma empatia.

1 de maio de 2020

MUITAS CRISES e SALVADORES DA PÁTRIA


É quase impossível ter acesso às notícias sem que a sensação de estar num pesadelo tome conta de cada brasileira e brasileiro consciente. Torna-se impossível manter o humor de Poliana com as situações grotescas diárias.

Este momento de horrores não caiu em nossas cabeças de uma só vez. Foi construído ao longo dos últimos anos e, como um polvo, esticou os tentáculos sobre o País abrangendo os motores da vida nas esferas social, econômica, política e institucional. Como se não bastasse, o mundo vive a crise de saúde.

A CRISE SOCIAL

Não há dúvidas de que a diversidade é a marca da população. Nossa formação social abriu um leque de possibilidades. Somos um país multicultural, de etnias diversas, de numerosas manifestações religiosas. Gente criativa, que dá nó em pingo d'água com um bom humor incrível, mas que resolveu negar os contrastes e passar a régua para nivelar a sociedade. Ou você se encaixa nos moldes determinados por poucos ou será perseguido. É preciso ser cristão, conservador, hétero, acreditar na supremacia masculina e manter os papéis de gênero. Esta perspectiva anula minorias e caminha para a ditadura da maioria, um conceito que não é numérico, mas de opressão. O ódio chegou.

A CRISE ECONÔMICA

Nossa história de desenvolvimento econômico teve como pilares a casa grande e a senzala. No início, de forma literal, mais tarde, representativamente. O chicote sempre açoitou os da senzala e esteve nas mãos dos proprietários de terras, de grandes empresas, dos bancos, que se locupletaram das riquezas produzidas pelo trabalho duro, certos de que teriam mais direitos por financiar a exploração. Este é o pensamento do liberalismo clássico, corrente que veste a pele de cordeiro e encanta desavisados entorpecidos pelo discurso de defesa das liberdades e da ideia de um Estado que garante direitos. Só esqueceram de contar a quem o liberalismo protege.

Nesta base de dominação econômica, a normalização da subserviência a poderosos deu a ilusão aos capatazes, que pensavam ser amigos dos donos do dinheiro, de serem também ricos. Porém, a falência do neoliberalismo provocou crises sucessivas e nivelou os de baixo embaixo. Uma vez com privilégios, é difícil abrir mão das migalhas. Em época de pouca farinha, sobrevive quem garante o pirão na selvageria. E a crença em um Salvador da Pátria, formado na escola de Chicago, emergiu. Este faria um novo milagre.

A CRISE POLÍTICA

O poder, ah! o poder. Ele está em toda parte e assume várias formas. O tecido social está permeado pelas relações de dominação. Ele é representado pelo Estado, pelas ideias, pelo capital. É na disciplina que ele se manifesta: autoridade e obediência. Um espiral de muitas representações.

Ainda é difícil imaginar uma sociedade em total equilíbrio e que prescinda o Estado, e este se estrutura legalizando e determinando os mandatários, que usarão a máquina estatal para defender interesses.

O fio seria longo, mas vou focar no pós 1988, quando uma Constituição cidadã, ao menos na teoria, garantia o caminho de uma democracia desejada e que deveria ser consolidada, dividindo poderes, atribuindo canais de participação popular, restituindo direitos e apontando deveres, conquistando a laicidade. Que beleza!

O caminho era a criação de instituições abertas ao diálogo, à distribuição de forças mais harmoniosas, de transparência das ações governamentais. Era até feio demonstrar tendências autoritárias. Atacar a democracia? Jamais! 

Cuidado! Os viúvos e os filhotes da ditadura estão à espreita.

A crise econômica trouxe a saudade do que nunca existiu. Despertou a crença no Salvador da Pátria, um personagem messiânico, e fez a política criar um monstro saído do esgoto do baixo clero, absolutista, sem empatia, aliado a falsos cristãos, que despertou e incentivou o ódio originário da perda dos privilégios. Uma aberração obscurantista e que se agigantou na desesperança. Precisa da mentira para alavancar seus projetos e aposta na confusão para subir os degraus do poder, só com os seus.

A CRISE INSTITUCIONAL

A consolidação de uma democracia passa pela garantia de equilíbrio e de autonomia das forças de Poder.

Mais uma vez, ela, a crise econômica, interfere na percepção de mundo e dá força e visibilidade ao judiciário, levanta bandeiras morais, respaldada num desejo punitivista crescente de certos grupos. Este Poder passa a exercer influências que não lhe competem. O País ofereceu o estrelato ao Poder que deveria ser o mais discreto. Sessões do STF receberam audiência de novela. Um juiz de Curitiba ganhou status de herói. Mais um Salvador da Pátria surgiu, o Paladino da Justiça. Era o sintoma da briga institucional de uma sociedade em desequilíbrio. Um petisco do que estaria por vir.

O monstro ofereceu palanque aos outros Salvadores da Pátria, para depois cortar-lhes a cabeça, já que não seria capaz de dividir o brilho. É imprescindível lembrar que quem manda é ele e, se desafiado, sua fúria é capaz da eliminação de opositores, mas também dos aliados.

A CRISE SANITÁRIA

A pandemia foi o elemento surpresa. Diante da doença, do sofrimento e da morte, o País precisa de um líder. 

O que temos é um admirador do próprio umbigo, com o único interesse de se beneficiar e de proteger os seus, apesar dos horrores que o circundam.

Isolado, resta buscar o apoio de oportunistas e apelar para a radicalização. Como todo animador de seita, fala apenas aos seus apoiadores e provoca o caos.

Resta saber por quanto tempo o mito sobreviverá. A nós cabe acordar do espanto, driblar o torpor.

25 de abril de 2020

Resumão da confusão - 25/04/2020


Hoje, pela primeira vez, senti verdadeiramente um abalo no Bolsonarismo, pelo menos, no que se refere ao apoio popular.

É preciso explicitar inicialmente o que considero Bolsonarismo. 

Não falo exclusivamente do Governo, mas da formação de um pensamento, de uma narrativa e de um corpo social que não se restringe apenas a quem inspirou a denominação.

São três as bases constituintes da ideia: a econômica, a moral e a autoritária.

A sustentação econômica surgiu do insucesso das decisões tomadas no segundo mandato de Dilma, da crise. Compôs o apoio ao Posto Ipiranga, certa do novo milagre econômico.

A fundamentação moral seria fruto do crescimento de uma religiosidade extremista, de caráter conservador, que pariu o "cidadão de bem", legalista, punitivista e puritano, apoiador da causa anticorrupção. Não que a causa não seja justa, mas deve ser um valor, jamais uma bandeira, já que a História não tem bons exemplos disso. Esta apoiou Moro.

A sustentação autoritária vem da incapacidade de assumir responsabilidade e, quem sabe, do Sebastianismo herdado. Com certeza, um autoritarismo, que no lugar de um algoz romantiza um pai vingativo e castrador, molda a base mais perigosa: intolerante, frustrada, ressentida, violenta e tosca. Essa venera o Mito, é o bolsonarista raiz. 

O fato é que, embora heterogênea, havia um só protagonista, que se forjou na onda do antipetismo e da Lava Jato, um oportunista de histórico medíocre, com apreço a torturadores, à censura, afeito a milícias, despreza a ciência, não demonstra empatia nem afinidade com o trabalho. Mau militar, parlamentar do baixo clero, jamais foi autor de projeto importante, nunca presidiu uma comissão. Só não viu quem não quis. Ninguém foi enganado.

Não teria sido eleito só com a própria base. Passou um verniz e conseguiu aproximar os outros braços, com promessas tentadoras de superpoder, deu carta branca, ou parecia ter dado. Juntou gente tão vaidosa quanto ele. Isso não pode triunfar.

Apostou nas redes sociais, soube aproveitar as oportunidades, mas nunca foi mais que um treteiro. E isso Jair faz bem, é uma fábrica de crises, de inimigos e de cortinas de fumaça. Diz, desdiz, não diz, contradiz. Isso é método, e faz com que esteja sempre certo, já que atira em todas as direções.

Garantiu a presença dos filhos no governo, verdadeiros animadores de torcida, guiados por um guru de araque. Juntos, cultivaram uma espécie de seita, com treinamento de guerrilha digital, engajados numa guerra cultural,  ideologizam todos os assuntos e criam conspirações permanentes.

De monotonia não se pode acusar o governo, as crises alimentavam os apoiadores. Soube estimular o ressentimento, regar o ódio, fazer crer que a vingança viria e manteve uma lealdade impressionante, até das personalidades que o acompanharam, Bebianno, Moro e militares que subiram na nave desgovernada.

Para permanecer no Governo é necessário concordar com o "supremo chefe". Cada discordância ou desagrado a Jair ou aos filhos resulta em fritura. Bolsonaro não respeita a independência dos poderes, desconhece limites, é implacável com os erros dos outros. Só com os dos outros.

A capa de homem incorruptível começou a ser manchada com o Queiroz e as rachadinhas do filho. O assassinato de Marielle Franco ronda o seu entorno e seus relacionamentos. Valeu-se da fórmula certeira: E o Lula? E o PT? Quem mandou matar Bolsonaro? 

Em silêncio, a Polícia Federal trabalha.

Não contava com uma pandemia. Controlar as próprias crises é mais fácil. O despreparo para o cargo ficou mais evidente e as escolhas não foram tão assertivas.

A personalidade doentia foi ficando mais intensa. Crise diplomática com a China, negação dos riscos da Covid-19, militares controlam mais a atuação da presidência e parece mais isolado. A demissão de Mandetta mostra que não exatamente. 

Aproximação com o centrão. Por que o centrão agora? E a história de ser contra a corrupção?

O apoio continuava forte: tinha as igrejas ao seu lado, Guedes e Moro, e as Fake News a todo vapor: motivos suficientes para defesas apaixonadas. O Bolsonarismo estava alimentado, apesar da má gestão da crise sanitária e algumas perdas, com 36% de apoio ninguém cai. Sentiu-se fortalecido.

O cerco aos filhos do presidente se fecha, isso é noticiado. Ele quer mais controle da PF. Não esperava a negativa de Moro, que percebeu precisar dar no pé para sobreviver na política. Bolsonaro banca a interferência política na PF.

Quem se alia a traidor ou é traído ou trai primeiro. Moro marca uma coletiva solo. Uma delação. O Bolsonarismo, perplexo, ensaia debandada, está em silêncio ou arrependido. Saiu vencedor, em um lançamento a 2022.

A resposta, também por uma coletiva, usa a tática da confusão. Diz nada com nada, apela para sentimentalismos. Acusações de volta. A palavra de um contra a de outro. Uma cena triste, o mau gosto exposto.

Nada é tão simples assim. Se os apoiadores não forem recuperados, ele tem o centrão. Perderá o apoio popular, mas é possível que ainda aprove seus projetos genocidas. 

É cedo para um veredicto, entretanto muita coisa pode acontecer: impeachment, isolamento com saída dos militares, ou ainda a tomada mais incisiva do Governo pelos militares. 

A única certeza: não era contra a corrupção, era pelo poder.

19 de março de 2020

Renuncia, Jair!

A falta de preparo de Jair era evidente. Um parlamentar que durante quase três décadas não teve qualquer relevância e, quando tinha visibilidade, era apenas por suas declarações polêmicas, raivosas e autoritárias, não poderia sequer pensar em ocupar o cargo de maior liderança do País.

Só que surgiu o Bolsonarismo. Sim, este é o termo para um conjunto de ideias de ressentimento, desprezo à democracia e de exclusões diversas. Uma das múltiplas expressões da extrema-direita, que toma corpo no mundo, assume prática política autoritária e aplica o neoliberalismo.

O antipetismo, que joga todas as esquerdas no mesmo balaio, fabricado nos bastidores pela direita, que vinha organizada para voltar ao poder desde 2005, embora não tenha alcançado sucesso, utilizou a bandeira contra a corrupção - necessária, porém deturpada no modus operandi - para conquistar incautos. Com apoio da imprensa tradicional, o movimento pescou todos os insatisfeitos e até os emergentes, beneficiados pelas políticas distributivas.

Este público, até então alienado e preocupado em vender o almoço para comprar o jantar, matando um leão por dia para sobreviver, começou a ter a informação nas mãos, porém pouca bagagem de conhecimentos históricos, de formação ética e parcas habilidades de interpretação. Um coquetel perfeito para manipulação em infusão no desejo de vingança, aparentemente indeterminado, já que a fama de pacífico nubla toda a agressividade observada nos estudos de formação do povo e que romantiza uma história contada por vencedores.

Neste cenário, o monstro foi criado, e a ideia comprada por todas as vozes, que ampliaram um movimento que se denominava patriota. Um patriotismo de fachada, reduzido a vestir verde e amarelo e a cantar o hino, desprovido de consciência de coletividade e de empatia. Um coro reacionário, fantasiado de conservador, que repudiava os Direitos Humanos, menosprezava a Ciência, trazia falsos cristãos como aliados, com planos extremistas. A pitada de filosofia barata temperou uma bomba.

Jair soube se aproveitar da situação. Aquele político medíocre refletiu o pensamento do brasileiro médio, que enfrentava uma crise e agarrava-se ao deleite de ter experimentado alguns prazeres possíveis somente em consequência da política econômica dos anos de prosperidade. Os erros não foram perdoados. Não contávamos mais com um político que conseguisse tão habilmente construir alianças e, em época de pouca farinha, meu pirão deve ser garantido.

Durante a campanha, Jair foi sincero. Nunca se mostrou com educação refinada, nem tentou disfarçar o que não sabia. Suas opções eram sempre pela tosquice, mas a elite havia rompido com o acordo de permitir a ascensão dos excluídos. Não importava a incapacidade. Havia uma identificação daquele que ascendia do baixo clero com uma maioria iludida pelo liberalismo falacioso, ajudado pelo uso competente das redes sociais e das Fake News.

Foi eleito democraticamente, ganhou nas urnas. Incontestável. Teve apoio daqueles que são seu espelho, os bolsonaristas raiz, dos encantados pela flauta antipetista, dos que se diziam sem opção, picados pelo antiesquerdismo sem fundamento e dos que foram passear no domingo, sem compromisso com o sufrágio.

Depois de pouco mais de um ano, a ficha cai. Mas sinto muito. Ninguém foi enganado.

O que fazer com um presidente que só joga para a galera, tem mania de perseguição, nada sabe dos processos de governança, só sabe provocar crises, ideologiza tudo, pauta comportamentos, é adepto de teorias conspiratórias, é amante do autoritarismo e incentivador de uma Teocracia?
Além das mazelas pessoais, as políticas adotadas não dão conta de um país tão complexo e deixam a incompetência cada vez mais desnuda.

Em trinta anos, dois processos de impeachment desmascaram uma democracia não consolidada. As instituições não têm respondido à altura. Dificilmente, neste momento, um novo pedido de impedimento passaria. Não há consenso. A lei do impeachment é muito específica.
Resta a esperança de que Jair renuncie, que reconheça sua incapacidade de gerir o país e de fazer política externa e até a volúpia política dos filhos.
Porém, ele é um orgulhoso da própria ignorância.

8 de março de 2020

Dia da Mulher, dia de reflexão

Dia da Mulher não é data para romantismo, mas é o dia para relembrar a luta pela emancipação, pela igualdade e para vislumbrar um longo caminho a conquistar.

É comum que membros de classes sociais esclarecidas e que já usufruem conquistas feministas questionem se a celebração deste dia não é exagerada ou até ultrapassada.

É importante olhar ao redor e além.
Em muitos lares, mulheres são controladas, espancadas, apesar de trabalharem, não decidem o que fazer com o próprio salário, são as únicas responsáveis pelo trabalho de casa, que não acaba e escraviza, não tem hora e ainda é sinônimo de culpa, se não estiver perfeito e em dia.

Mulheres são acusadas de terem provocado a violência por usarem roupas curtas. Mas onde está escrito que a roupa autoriza ações não consentidas? Estupro não é sexo. Sexo é consentido.

Mulheres são desrespeitadas por não se enquadrarem nos padrões de beleza. A estas são negadas vagas de emprego por este motivo. Não vemos homens serem desrespeitados por terem barriga, cabelos brancos. Algumas marcas masculinas são consideradas sinais de virilidade, enquanto mulheres são depreciadas e adjetivadas como velhas, gordas, passadas e outros desmerecimentos.

Às mulheres são impostas escolhas, como, por exemplo, a maternidade. Mas não seria escolha? Que contradição!

A sexualidade das mulheres é tolerada até certo ponto. Se "passar da medida" é vagabunda. Mas qual é a medida? Se não for o mesmo metro que permite a dos homens, é injusta.

Quando a mulher tem filhos, cobra-se dela abdicar sempre por eles. Se sozinha, então, não pode sair, precisa fazer malabarismos para encontrar momentos consigo, necessários, primordiais.

Poderia listar outros tantos desequilíbrios, mas não vale a pena. Vivemos em um momento em que algumas mulheres rejeitam o feminismo e se denominam femininas, sem perceber que caem de novo nas tramas dos padrões que nos "coisificam".

Até nisso retrocedemos, e fico pensando no quanto a minha geração deixou de fazer.

Ainda dá tempo. Vamos à luta!