25 de janeiro de 2011

Tia encalhada

Logo após o incidente do pneu (postagem anterior) estava em perfeita "lua-de-mel" com as turmas. Vivia um momento de muitas descobertas particulares e ótima fase profissional. O trabalho me trazia muita satisfação, mesmo com as dificuldades de aprendizagem de vários alunos. Impossível negar os avanços, considerando o início emperrado. Novos professores chegaram com ideias para somar ao trabalho e os projetos tiveram alma renovada. Clima de amizade e, consequentemente, o reflexo era visível.

Durante o ano, a escola participou de um projeto muito legal dos bombeiros que envolvia educação para a cidadania, esportes, orientação para primeiros socorros, viagem e outras atividades de lazer. E lá estava eu, acompanhando tudo, com minhas duas matrículas na mesma escola, desfrutando da permuta concedida na época do trabalho na equipe de ensino da Coordenadoria Regional. Como não sabia sobre as mudanças que em breve ocorreriam, estava tranquila, feliz da vida... Percebia um interesse político no projeto dos bombeiros, mas no geral era positivo.

Para encerramento da proposta, um baile foi marcado no Petropolitano Futebol Clube. Os adolescentes estavam animadíssimos! Só um detalhe poderia estragar tudo: como pagariam o transporte? As famílias tinham enormes dificuldades financeiras e não sobrava para esse luxo. Imediatamente, encontrei a solução, já que deveríamos acompanhar a galerinha. Eu e a diretora (ela foi convidada para participar de um coquetel vip oferecido pelos oficiais... eu não, ía só ficar de olho) levaríamos as turmas em nossos carros! Nem todos iriam e as turmas eram pequenas.Alguns poucos teriam dinheiro para o ônibus. Duas ou três viagens resolveriam (claro que a lotação era superior à máxima possível e todos foram ao baile como o que é embalado a vácuo.

No clube, fiquei em um cantinho simpático, segurando todas as bolsas, mochilas, casacos e tudo o mais que fora levado para que a moçada pudesse dançar. Ah, que bonito! De vez em quando, um beijinho aqui, outro ali, à moda dos jovens de hoje. Eu realmente estava me divertindo ao observar aquilo. Lamentava ter sido tão careta quando passava pela mesma etapa adolescente. A pilha de objetos de que deveria tomar conta só ía aumentando e eu, bem micro, sumi atrás da montanha que se formou. Tudo ótimo!

Quando o soninho começou a bater, o aluno mais velho se aproximou para conversar comigo. Fiquei muito sem jeito de ele estar preocupado em me fazer companhia, afinal, o meu objetivo era zelar por todos, construir uma relação de maior confiança e proximidade. Não tinha topado aquilo para meu deleite e aconselhei-o a voltar a dançar com os colegas. Eu estava bem. Só que o rapazote não "assimilou" a dica e ficou lá, conversa vai, conversa vem até que recebi a seguinte proposta:

__ Professora, posso tirar as suas "telhas" de aranha?

Custei a entender o que o garoto queria... Quando a ficha caiu, comecei a rir escandalosamente e até hoje não sei se pela proposta ou pelas telhas e ao mesmo tempo, preocupada com a minha imagem, pois eu devia estar com cara de tão encalhada que precisaria da caridade do menino mais assediado da noite e que já colecionava uns dez beijos naquele bailinho.

9 de janeiro de 2011

Bendito pneu





Comecei a trabalhar no segundo segmento do Ensino Fudamental em 2003, logo que saí da equipe de Gerência de Ensino da Coordenadoria. Até então, só havia trabalhado com crianças. Gostava muito, mas era preciso viver novas experiências tanto no âmbito profissional quanto no particular, e aproveitei uma formação adicional que tinha para tentar atuar nas turmas de 6º e 7º anos. Isso aconteceu em fins de abril e início de maio daquele ano.

Quando cheguei à escola, os alunos só tinham professor de Educação Física e o coitado passava os dias procurando envolvê-los em projetos, a fim  de que não fossem para as ruas. Em resumo, jogavam bola e participavam de ginástica olímpica o tempo inteiro. Que sacrifício, não? E eu cheguei com a pretensão de ensinar Língua Portuguesa e Artes para essa moçada, quase na totalidade fora da idade e colecionadora de repetências. Um desastre total...

Os adolescentes me viam no pátio e já montavam uma careta de desprezo. Como doía! Era bem intencionada e a cada aula tentava uma nova estratégia para motivá-los. Cheguei a pensar ser impossível conquistá-los. Foi um período de bastante angústia.

Numa terça-feira de fim de outono, na hora da saída, cheguei ao estacionamento e encontrei um dos pneus do carro arriado. Imediatamente, pensei que era só o que me faltava: cansada, depois de aulas de cão... e ainda teria de me virar para trocar um pneu SOZINHA. Não tinha mais quase ninguém que eu julgasse poder me ajudar. O funcionário de serviços gerais me viu ensaiar a troca pelo estepe e chamou justamente os líderes da turma que mais me enfrentava. Tive de aceitar e ainda, com um falso sorriso, agradecer. Éramos todos inexperientes na coisa, mas eu me recordei das aulas de direção defensiva e dirigia a operação, fingindo conhecimento.

Terminamos o serviço com a noite iniciada e o mínimo que eu poderia fazer era levar a garotada em casa, proposta que me devolveu olhos arregalados de espanto e um misto de reconhecimento imprevisto. Levei um a um (eram quatro) no pé de suas comunidades - eles não me permitiram entrar pelas vielas, acho que sentiram vergonha - e fui para casa com uma sensação de leveza que não experimentara antes, naquele novo momento profissional.

O pneu furado, que julguei ser uma real desgraça ao fim do dia, trouxe uma nova relação com os meninos e iniciamos, lentamente, um período de cumplicidade. Durante o ano acompanhei as turmas em atividades extraclasses, a pedido deles, e considero  o momento que se seguiu a esse o melhor em interação de toda minha caminhada. Sinto saudade.

2 de janeiro de 2011

ABC mágico

Trabalhei por dois anos letivos em turmas de alfabetização, ainda com metodologia tradicional. Lembro-me da ansiedade vivenciada por todos os envolvidos no processo: família, professora, coordenação e crianças. É um momento que define bastante o primeiro relacionamento do aprendiz com o conhecimento e a parceria com a família é fundamental.

No turbilhão de responsabilidades em que o professor alfabetizador se percebe, perdem-se algumas sutilezas encantadoras, como as tentativas de pronúncia na leitura, escondendo caretas imperdíveis dos pequeninos, a surpresa ao perceber que as sílabas sem sentido, quando solitárias, ganham significados nas várias combinações, ou mesmo ao notarem que as ilustrações têm relação com o que foi escrito no corpo do texto. Pode parecer simplório, mas, para o inciante, cada descoberta é uma festa.

Posso afirmar com toda segurança que é a turma de trabalho mais gratificante a curto prazo. As diferenças no aluno entre o início e o final do ano são muito visíveis, o que nos dá a sensação de missão cumprida e de alívio. Além disso, o universo infantil desta fase é uma caixinha de surpresas diária, e a rapidez da aquisição de novas aprendizagens é fantástica. Como seria maravilhoso se conseguíssemos aprender pelo resto da vida com a velocidade das primeiras experiências!

Numa das turmas que alfabetizei, vivi um dos momentos mais prazerosos que o magistério me proporcionou. Um encontro no Sesc de Nogueira com as várias turmas de C.A. foi um dos eventos mais esperados do ano. Jogos, leitura de histórias, caça ao tesouro... Tudo planejado para que o dia ficasse na memória. No intervalo para o lanche, ajudei as crianças a abrir pacotes, garrafas térmicas e, por fim, já morta de fome, chegou a minha vez de fazer uma boquinha. Ai que fome!

Comprei um misto quente na cantina e, quando dei a primeira mordida no sanduíche, notei que os belos olhos azuis de uma lourinha da turma, fitavam-me estarrecidos. Paralisei. Devia estar toda lambuzada de queijo ou, talvez, enfeitada com farelo de pão de forma torrado. Comecei a limpar os cantos da boca envergonhada e vi a garotinha cutucar o coleguinha ao seu lado com o cotovelo. Sem olhar para o menino, ela sussurrou alto o suficiente para que eu a ouvisse: "Ela come!"

"Ela" era eu!!!! Como poderia ter convivido quase um ano com aquelas crianças e não ter percebido que eu representava um ser quase mágico para algumas? E eu estava bem gordinha! Perdi a fome e tive de empurrar o resto do misto só para não ficar sem nada no estômago até chegar em casa. Estava emocionada. Continuamos as atividades, mas fiquei completamente "fora do ar".

Senti na pele a importância do modelo que representamos para o aluno, a referência do ideal que chega a ofuscar o quanto de real há em nós.