2 de janeiro de 2011

ABC mágico

Trabalhei por dois anos letivos em turmas de alfabetização, ainda com metodologia tradicional. Lembro-me da ansiedade vivenciada por todos os envolvidos no processo: família, professora, coordenação e crianças. É um momento que define bastante o primeiro relacionamento do aprendiz com o conhecimento e a parceria com a família é fundamental.

No turbilhão de responsabilidades em que o professor alfabetizador se percebe, perdem-se algumas sutilezas encantadoras, como as tentativas de pronúncia na leitura, escondendo caretas imperdíveis dos pequeninos, a surpresa ao perceber que as sílabas sem sentido, quando solitárias, ganham significados nas várias combinações, ou mesmo ao notarem que as ilustrações têm relação com o que foi escrito no corpo do texto. Pode parecer simplório, mas, para o inciante, cada descoberta é uma festa.

Posso afirmar com toda segurança que é a turma de trabalho mais gratificante a curto prazo. As diferenças no aluno entre o início e o final do ano são muito visíveis, o que nos dá a sensação de missão cumprida e de alívio. Além disso, o universo infantil desta fase é uma caixinha de surpresas diária, e a rapidez da aquisição de novas aprendizagens é fantástica. Como seria maravilhoso se conseguíssemos aprender pelo resto da vida com a velocidade das primeiras experiências!

Numa das turmas que alfabetizei, vivi um dos momentos mais prazerosos que o magistério me proporcionou. Um encontro no Sesc de Nogueira com as várias turmas de C.A. foi um dos eventos mais esperados do ano. Jogos, leitura de histórias, caça ao tesouro... Tudo planejado para que o dia ficasse na memória. No intervalo para o lanche, ajudei as crianças a abrir pacotes, garrafas térmicas e, por fim, já morta de fome, chegou a minha vez de fazer uma boquinha. Ai que fome!

Comprei um misto quente na cantina e, quando dei a primeira mordida no sanduíche, notei que os belos olhos azuis de uma lourinha da turma, fitavam-me estarrecidos. Paralisei. Devia estar toda lambuzada de queijo ou, talvez, enfeitada com farelo de pão de forma torrado. Comecei a limpar os cantos da boca envergonhada e vi a garotinha cutucar o coleguinha ao seu lado com o cotovelo. Sem olhar para o menino, ela sussurrou alto o suficiente para que eu a ouvisse: "Ela come!"

"Ela" era eu!!!! Como poderia ter convivido quase um ano com aquelas crianças e não ter percebido que eu representava um ser quase mágico para algumas? E eu estava bem gordinha! Perdi a fome e tive de empurrar o resto do misto só para não ficar sem nada no estômago até chegar em casa. Estava emocionada. Continuamos as atividades, mas fiquei completamente "fora do ar".

Senti na pele a importância do modelo que representamos para o aluno, a referência do ideal que chega a ofuscar o quanto de real há em nós.

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